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O artigo 39 da Lei 11.196/2005 isenta de imposto de renda o ganho de capital “auferido por pessoa física residente no país na venda de imóveis residenciais, desde que o alienante, no prazo de 180 dias contado da celebração do contrato, aplique o produto da venda na aquisição de imóveis residenciais localizados no país”.

O parágrafo 2º do mesmo artigo estabelece que “a aplicação parcial do produto da venda implicará tributação do ganho proporcionalmente ao valor da parcela não aplicada”.

Pretextando regulamentar a regra, a Instrução Normativa SRF 599/2005 dispôs que a isenção — limitada pela lei ao produto do ganho auferido pela fração do preço de compra sobre o preço de venda, se este quociente for inferior a 1 — sujeita-se cumulativamente a um segundo redutor, aplicável quando pelo menos um dos negócios seja feito a prazo. De fato, a teor do artigo 2º, parágrafo 7º, da IN, a parcela isenta, nessa situação específica, tem ainda por teto:

I) nas vendas a prestação e nas aquisições à vista: a soma dos valores recebidos dentro do prazo de 180 dias contado da data da celebração do primeiro contrato de venda e até a(s) data(s) da(s) aquisição(ões) do(s) imóvel(is) residencial(is);

II) nas vendas à vista e nas aquisições a prestação: os valores recebidos à vista e utilizados nos pagamentos dentro do prazo de 180 dias, contado da data da celebração do primeiro contrato de venda;

III) nas vendas e aquisições a prestação: a soma dos valores recebidos e utilizados para o pagamento das prestações, ambos dentro do prazo de 180 dias, contado da data da celebração do primeiro contrato de venda.

Ocorre que a imposição, por simples instrução normativa, do regime de caixa no cálculo da parcela isenta do ganho de capital viola abertamente a lei (que não fixa este critério), a razoabilidade, a isonomia e a capacidade contributiva.

Deveras, o fato gerador do IRPF no ganho de capital sobre imóveis é a assinatura da respectiva promessa de compra e venda (Lei 7.713/88, artigo 3º, parágrafo 3º; IN/SRF 84/2001, artigo 3º, inciso I). No caso de venda a prazo, o imposto é calculado como se a venda fosse à vista, mas o seu recolhimento fica diferido para as datas de recebimento de cada parcela (Lei 7.713/88, artigo 21; IN/SRF 84/2001, artigo 31). Em suma:

a) aplica-se o regime de competência para a apuração do imposto devido, por força do princípio da irretroatividade (Constituição Federal, artigo 150, inciso III, alínea “a”; CTN, artigo 144); e

b) aplica-se o regime de caixa para a definição das datas de pagamento do imposto devido, por força do princípio da capacidade contributiva (Constituição Federal, artigo 145, parágrafo 1º).

O cálculo da parcela isenta liga-se, está claro, à apuração do imposto devido, devendo por isso atender ao regime de competência. Com efeito, não faz sentido adotar-se este critério para a obtenção ganho de capital — calculado na(s) data(s) da(s) promessa(s) de compra e venda — e mesmo do primeiro limite da isenção (o único juridicamente válido: o produto do ganho de capital pelo porcentual do preço de venda aplicado na nova compra, se inferior a 1; limite aferido na data da última promessa de compra firmada em até 180 dias da primeira promessa de venda), mas aplicar o regime de caixa para a determinação de um pretenso segundo teto para a isenção: o menor valor entre a soma das parcelas recebidas pela(s) venda(s) e pagas pela(s) compra(s) no prazo de 180 dias da assinatura do contrato de venda (ou do primeiro deles, caso tenha havido mais de um).

A coerência — uma das acepções do postulado da razoabilidade[1] — exige a manutenção de um só critério ao longo de toda a operação. Se o que vale é a data do contrato (de venda) para a apuração do ganho, o que deve valer é a data do contrato (de compra) para o cálculo da porção dele a ser exonerada. Esse é o sentido jurídico de “aplicação do produto da venda”, para os fins do artigo 39, caput, da Lei 11.196/2005, sentido que é desvirtuado pelo artigo 2º, parágrafo 7º, inciso III, da IN/SRF 599/2005.

Além de violar a lei, tal como interpretada à luz da razoabilidade (vedação de incoerências internas), a IN ofende ainda a isonomia e a capacidade contributiva. Imagine-se que três pessoas vendam as suas respectivas casas no mesmo dia por R$ 1,5 milhão, obtendo ganho de capital de R$ 1 milhão. Imagine-se que tais pessoas, no dia seguinte à assinatura dos contratos de venda, adquiram novas casas por R$ 750 mil, sendo que:

a) A vendeu e comprou à vista;

b) B vendeu em duas parcelas de R$ 750 mil e comprou em duas parcelas de R$ 375 mil (0 e 360 dias);

c) C vendeu em 2 parcelas de R$ 500 mil e R$ 1 milhão (0 e 360 dias), e comprou a prazo (R$ 750 mil em 360 dias), usando a primeira prestação recebida para pagar dívidas anteriores.

Pela aplicação da lei, todos gozariam de isenção sobre R$ 500 mil: 50% do ganho auferido, por terem aplicado 50% do produto da venda na aquisição do novo imóvel (artigo 39, parágrafo 2º). Pelos critérios da IN:

i) A, que neste negócio revela maior capacidade contributiva, teria isenção sobre os R$ 500 mil;

ii) B, que revela capacidade contributiva média (pois recebeu metade à vista e dela pôde dispor), teria isenção sobre R$ 375 mil;

iii) C, que releva a menor capacidade contributiva (pois recebeu apenas 1/3 à vista, mas teve de empregá-lo para pagar dívidas), não terá isenção nenhuma.

Como se nota, o discrímen radica nas condições em que a pessoa logrou vender o seu imóvel (quanto piores, menor a isenção) e na sua situação financeira antes da venda (quanto pior, menor a isenção). A imprestabilidade desses critérios para identificar os contribuintes mais ou menos elegíveis ao benefício salta aos olhos.

Para aferir a compatibilidade de uma norma com o princípio da isonomia, lembra Celso Antonio Bandeira de Mello, “tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório [no caso, as condições de venda do imóvel e as prévias condições financeiras do vendedor]; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada [menos isenção para quem se encontra em piores situações]. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional [tributação segundo a capacidade contributiva]”.[2]

Quanto ao critério de graduação dos impostos, adverte a doutrina que, “se o poder tributário quiser tributar igualmente os contribuintes de capacidade econômica diversa, ou se pretender tributar mais intensamente os contribuintes de menor capacidade econômica, encontrará, no princípio constitucional da capacidade contributiva, um obstáculo”. [3]

Anote-se, por último, que o excesso aqui denunciado não é o único cometido pela Receita Federal na elaboração da IN 599/2005, valendo lembrar que o STJ censurou a restrição imposta, também de forma autônoma (sem respaldo legal), pelo seu artigo 2º, parágrafo 11, inciso I, segundo o qual a isenção não se aplica “à hipótese de venda de imóvel residencial com o objetivo de quitar, total ou parcialmente, débito remanescente de aquisição a prazo ou à prestação de imóvel residencial já possuído pelo alienante” (2ª Turma, REsp. 1.469.478/SC, Relator para o acórdão Min. Mauro Campbell Marques, DJe 19.12.2016).

Por Igor Mauler Santiago

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